domingo, 22 de abril de 2007

Parlamentarismo:origem e evolução na Inglaterra medieval

Gustavo Lima Campos
médico, bacharel em Direito pela UNIPAC - Ubá (MG), especializando em Direito Tributário e Direito do Trabalho

Introdução:

O parlamentarismo foi fruto do desenvolvimento e das peculiaridades ímpares da sociedade inglesa ao longo de vários séculos. Não foi "descoberto" ou "inventado", muito menos adaptado da realidade de outros países, mas sim foi se desenvolvendo em espasmos com longos anos ou séculos de calmaria frente às exigências do povo e do governo da Inglaterra. Ao contrário do que sempre lemos em textos mais breves ou menos aprofundados, o parlamentarismo como o conhecemos não foi iniciado após a Revolução Gloriosa de 1688 com a ascensão de Guilherme de Orange ao trono da Inglaterra, mas vem de muitos séculos antes, ainda sob o domínio saxão, culminando, durante a dita revolução, no seu formato quase final e acabado (que seria dado durante o reinado de Vitória I, ao longo de todo o século XIX, o que está além do escopo deste breve estudo).


História, Origem e Evolução:

Quando Guilherme da Normandia invadiu as ilhas da Grã-Bretanha no ano de 1066, subjugando o reino saxão que estava com seu trono vago pela morte de Eduardo, o Confessor, já existia neste reino o Witan, conselho do Rei, composto dos principais líderes de clãs, comerciantes, religiosos e burgueses das ilhas. Esse conselho era freqüentemente reunido pelo rei para deliberar sobre os mais importantes assuntos de defesa ou impostos, ainda que isso se fizesse ao bel prazer do governante. Essas reuniões, com freqüência cada vez maior, se davam no mosteiro construído ao leste de Londres, na ilha de Thorney, pelo rei Eduardo, também conhecido como Westminster.

No ano de 1080, houve ameaça de reconquista das terras da Inglaterra pelos saxões ao norte e leste, ajudados pelos reis da Dinamarca e da Noruega. Em função dos gastos preparatórios contra essa invasão, que jamais ocorreu, Guilherme I iniciou, pela primeira vez em toda a história da humanidade, o censo do Domesday, com vistas ao recolhimento de impostos de forma pessoal, e não mais somente pelos senhores feudais e comerciantes. Embora tenha sido pequena, a taxação motivou revoltas isoladas, prontamente esmagadas pelo Conquistador.

No século XII, os filhos e netos de Guilherme I, construíram próximos a abadia, um salão real que rivalizava com os principais da Europa continental, o Westminster Hall, salão que passou a ser utilizado, então, para as reuniões do Witan ou conselho do Rei.

Com a coroação de Ricardo I, Coração-de-Leão, bisneto de Guilherme I, e sua ida após poucos meses de reinado para a terceira cruzada católica para libertação da Terra Santa dos sarracenos, o reino da Inglaterra ficou sob a regência do Chanceler Longchamp. O irmão mais novo de Ricardo, João Sem Terra, na partilha da herança de seu pai, Henrique II, herdou apenas poucas propriedades e foi proibido pelo rei de retornar a Inglaterra, para não comprometer a estabilidade do reino. Em função de seu rei estar indo à Terra Santa expulsar os infiéis, os seus súditos iniciaram (após mal entendido ocorrido durante a coroação de Ricardo I) forte perseguição aos judeus trazidos ao reino ainda durante a conquista, perseguição esta que se estenderia por mais de 100 anos, antes que fossem, por longos séculos, expulsos da Inglaterra. Porém no ano de 1191, João Sem Terra iniciou forte movimento, com o apoio da burguesia de Londres e de outros nobres, para afastar Longchamp e assumir o Trono da Inglaterra. Com a derrota deste em Londres, em novembro de 1191 João Sem Terra foi proclamado herdeiro do trono. Com a morte nas Cruzadas de Ricardo Coração-de-Leão, João, herdeiro do Trono, assumiu o governo, não sem antes haver matado o seu sobrinho (e real herdeiro do trono inglês, Arthur da Bretanha).

João Sem Terra foi péssimo governante, perdendo vastas porções de sua herança na França e arruinando o tesouro tão bem deixado por seu irmão. Além disto, também houve fortes atritos com o Papa, que colocou a Igreja da Inglaterra em interdição. Sendo assim, um forte grupo composto das principais famílias feudais e burguesas (especialmente da cidade de Londres) obrigou o rei a assinar, em 15/06/1215, a Magna Carta, primeiro documento em toda a história da humanidade a limitar de várias maneiras os poderes de um rei absoluto.

Após a morte de João I, seu filho, Henrique III, e seu neto Eduardo I reinaram longamente e em paz. Porém, além de terem herdado um reino com dificuldades financeiras, também mantiveram a perseguição (aliás, também feita em diversas outras regiões da Europa com aval da Igreja Católica) aos judeus, culminando com a sua total expulsão no ano de 1290. Com isso, perdeu a Inglaterra grande fortuna, agravando ainda mais as já combalidas finanças do Estado.

Eduardo I, o Leopardo, foi um grande rei para seu país. Regulamentou tudo, desde as medidas até as leis. Conquistou Gales e afastou o risco dos escoceses. Mas teve dificuldades para submeter a nobreza e a burguesia de Londres. Ardiloso e inteligente, instituiu "parlamentos" duas vezes ao ano em Westminster. Seu objetivo era contrabalançar o poder da nobreza, maioria no Witan, convocando o seu conselho de barões, mas também as outras partes que seriam afetadas pela sua decisão (cavaleiros menores, burgueses, comerciantes, clero), ou mesmo todos os representantes destas classes juntos. Esses parlamentos também eram testemunhas da Justiça Real, última instância de recursos jurídicos. Muitas leis e decisões eram tomadas apenas com seus conselheiros íntimos (ministros), mas decisões de maior importância eram tomadas no parlamento, ainda que convocado apenas por decisão pessoal do monarca. O Rei nomeava os representantes que desejava para o parlamento, sendo esse, no mais das vezes, dócil instrumento nas mãos do monarca.

Ao longo do tempo, principalmente durante o reinado de Eduardo III, neto de Eduardo I, o Parlamento se consolidou, tendo sido costume a assembléia se dividir em três grupos: o clero, o Rei e seus barões e os demais membros (também chamados de "comuns"). No final de seu longo reinado, Eduardo III, doente e fragilizado, necessitava desesperadamente de dinheiro após longa guerra contra a França (seu reinado ocorreu durante a Guerra dos Cem Anos). Aproveitando-se da fragilidade do rei doente, os representantes dos "comuns", quando de nova convocação para instituição de mais impostos, se negaram a aceitar, alegando mal versação do dinheiro público por alguns ministros. Alguns destes ministros, após longo impasse, sofreram "ampeschement" (no francês utilizado nas cortes ou "impeachment" no inglês popular) e assim foi possível cobrar os impostos, ainda que muito menores que os solicitados pelo Rei. Surgiram nesta fase a figura do "Speaker" dos Comuns e a prática do impeachment.

Com a morte de Eduardo III, seu filho Ricardo, menor de idade, ficou sob a tutela de seu tio John de Gaunt. Devido a nova guerra com a França, apoiada pela Escócia, apelou-se novamente ao expediente dos impostos individuais, com o agravante de ser uma taxa única para todos, ricos e pobres, e não como antigamente, de acordo com as posses. Apenas a situação agora era diferente. A peste negra havia feito vítimas 1/3 de toda a população, as colheitas dos últimos anos haviam sido ruins, em boa parte devido à falta de mão-de-obra e, estando os laços feudais de senhorio e vassalagem em rompimento em boa parte devido à diminuição da mão-de-obra, não mais haveria ajuda para o pagamento da taxa por parte de alguns senhores feudais. Coincidentemente, despontava a figura de John Wyclif, erudito professor da Universidade de Oxford. A despeito da crença geral de que foi com Martinho Lutero que se iniciou a luta contra os hábitos poucos religiosos da Igreja Católica – venda de indulgências e cargos eclesiásticos e outros – e que também foi aquele que fez a primeira tradução da Bíblia do latim para a linguagem popular de seu país, foi John Wyclif quem iniciou, em 1380, essa luta, vertendo a Bíblia para o inglês e combatendo em suas palestras o clero corrupto da Igreja. Sendo a Igreja da Inglaterra grande possuidora de terras (as estatísticas da época apontam para aproximadamente 1/3 do total de terras do país) e isenta dos impostos, as pregações de Wyclif associadas com a cobrança de impostos individualmente, de forma elevada e muito acima do razoável para uma classe camponesa empobrecida, estava preparado o terreno para uma revolta. A faísca para detonar a explosão não poderia ser mais prosaica: devido à alta sonegação do imposto individual, o conselho do Rei ordenou, em 1381, que os "sheriffs" ou coletores de impostos fizessem novas visitas, especialmente em Essex e East Anglia, principais pontos de sonegação. Isso desencadeou um levante de camponeses nestas duas regiões, rapidamente com a adesão do campesinato de outras áreas. Em poucas semanas tomaram de assalto grandes cidades na sua marcha em direção da capital, acampando nos arredores da cidade uma multidão calculada, na época, em aproximadamente 100.000 homens e mulheres. Após entrarem na cidade e iniciarem um saque e depredação de vários prédios e palácios, foram contidos pela autoridade de Ricardo II que, sem exército ou milícia, os dominou e dispersou, fazendo falsas promessas e iludindo a boa-fé de camponeses ignorantes.

Essa revolta de camponeses foi importantíssima para a confirmação das funções do Parlamento, não mais o Rei podendo prescindir de sua convocação (ou o convocando apenas quando desejasse) para a instituição de impostos ou outras decisões importantes para o reino.

Em 1603, com a morte de Elizabeth I, a Rainha Virgem, sem herdeiros nomeados ou na linha sucessória direta, assumiu o Trono da Inglaterra Jaime VI, rei da Escócia, com o nome de Jaime I. Sendo governante da Escócia já há vários anos e governando de forma autoritária e sem limites a seus poderes, Jaime I sempre teve uma relação conflituosa com o Parlamento. Ao contrário de todos os seus predecessores, desde Eduardo I, Jaime I não mais convocava o Parlamento em intervalos regulares ou o consultava ao tomar decisões de importância para o Reino ou algumas de suas classes principais. Sendo assim e tendo oferecido monopólios a vários nobres não tradicionais, viu insurgir-se contra si a nobreza tradicional e os comuns. Como não eram convocados, o Parlamento pôde usar de um estratagema que dispensava sua convocação: o impeachment. Nem isso demoveu o rei. Morto este e tendo sido sucedido por seu filho, Carlos I, não houve mudança na postura frente ao Parlamento. Porém, em 1629, sem conseguir lançar impostos e tendo sido lembrado por uma comissão parlamentar dos compromissos assumidos na sua coroação de seguir a Carta Magna, houve grave ruptura no país, aumentando a distensão entre partidários do Rei e partidários do Parlamento. Ao tentar impor aos presbiterianos da Escócia o culto anglicano, houve um levante naquele país. Para combatê-lo, o Rei necessitava de dinheiro. Para tal, necessitava convocar o Parlamento. Ao fazê-lo, Carlos I foi confrontado com uma série de exigências humilhantes por parte daquele, exigências essas que foram sendo aprovadas uma a uma. Ao tentar aprovar o impeachment do principal favorito do Rei, Lorde Strafford, o rei resistiu e mandou prender alguns líderes parlamentares. Houve forte resistência por parte dos comuns e as prisões não foram efetuadas. Assim, em alguns meses o Rei iniciou a formação de um exército baseado na cidade de York (o que contrariava as leis, já que não poderia manter o Rei exército sem a autorização do Parlamento), tendo o Parlamento, em nome do Rei, convocado tropas e formado exército baseado na cidade de Londres. E assim começou a guerra civil inglesa. Durante essa guerra o rei Carlos I foi decapitado e Oliver Cromwell assumiu o governo com o título de Lorde Protetor.

Durante o governo do Lorde Protetor, em conjunto com diversos Parlamentos sucessivos, o poder da Inglaterra sobre a Escócia, Gales e a Irlanda foi sedimentado, dando origem ao reino da Grã-Bretanha, assim como se formou um exército profissional e se alavancou o domínio marítimo da Grã-Bretanha, tornando-se esta a maior potência naval em muitos séculos. Com a morte de Cromwell, o declínio de seu filho em sucedê-lo e as fortes disputas entre o exército e o Parlamento sobre sucessão, Carlos II, vindo do exílio, assumiu compromisso com o Parlamento em convocá-lo periodicamente e manter exército fixo sob suas ordens e, assim, foi coroado Rei da Inglaterra, Escócia, Gales e Irlanda.

Carlos II era oficialmente o chefe da Igreja da Inglaterra, anglicana. Porém, em segredo, professava a fé católica, como sua esposa e seus filhos, todos ilegítimos, já que a rainha não teve filhos viáveis. Durante seu reinado, lenta e gradualmente, Carlos II tentou promover uma catolificação no seu reino, atenuando restrições aos católicos, aceitando colaboradores com essa fé, dificultando a vida dos huguenotes franceses refugiados na Inglaterra (Luís XIV havia revogado o Edito de Nantes alguns anos antes e vinha promovendo verdadeira caça aos huguenotes franceses). O Parlamento e a população aceitavam estas condições em virtude de o herdeiro do rei ser seu cunhado, Guilherme de Orange, governante dos Países Baixos, homem amado por seu povo e extremamente tolerante em matéria religiosa. Quando, por fim, o Rei proclamou ter nascido seu herdeiro em um quadro bastante duvidoso, já que até então todos os filhos do casal tinham sido abortados ou nascido inviáveis, houve revolta do Parlamento e da população porque essa criança, cuja filiação era bastante questionável (houve sugestões na época de que o Rei havia ordenado que fosse trazido o filho de um nobre católico para ser criado como príncipe), certamente seria criada como católica e isso era inadmissível. Convocado pelo Parlamento, Guilherme de Orange desembarcou na Inglaterra em 5/11/1688, iniciando sua marcha para Londres, enquanto o rei Carlos II fugia para o norte, sem o apoio do exército ou do povo. Declarado traidor, Carlos II foi destituído e Guilherme de Orange foi coroado Rei da Inglaterra, mas não sem antes ser obrigado a assinar o "Bill of Rights" se comprometendo a se submeter – e também seus descendentes – ao Parlamento, ficando o Rei com poucos poderes de representação, sem poder interferir em questões de Estado ou legais.

Guilherme de Orange, seu filho e seu neto governaram durante longos anos, porém jamais adquiriram fluência na língua de sua nova nação. Com isso, mais e mais o conselho de ministros ficou livre para governar, apenas submetendo ao Rei para seu aceite os documentos já debatidos e aprovados pelo Parlamento. Estava praticamente acabado o desenvolvimento do Parlamentarismo como o conhecemos hoje em dia.


Conclusão:

Através da exposição histórica pudemos avaliar que o desenvolvimento do parlamentarismo não foi um impulso inexorável e sequer obra de alguma geração ou pensamento temporário, mas o resultado final das aspirações de toda uma Nação ao longo de toda a sua história. Acreditamos que toda e qualquer tentativa de cópia do modelo inglês deva levar em conta as características próprias da Nação onde se deseja implementar, uma vez que não é possível se transplantar séculos de história e realizações de um povo para outro país de forma correta e mantendo-se aquele espírito. Observamos também que, com exceção talvez de uns poucos lugares onde ainda se faz a democracia direta, não há em todo o mundo maior exemplo de uma forma de governo mais democrática e eficaz, depurada ao longo de séculos pela experiência da tentativa e erro, forçando-nos a admirar ainda mais as realizações desta grande nação que é a Grã-Bretanha, em especial a Inglaterra.

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